A síntese da Propriedade Intelectual com a agricultura
O economista Antônio Márcio Buainain tem se debruçado, nos últimos anos, no estudo do desenvolvimento da agricultura brasileira e a sua inevitável conexão com a Propriedade Intelectual. Professor da Unicamp, autor de vários livros, artigos e estudos sobre o tema, Buainain assina, junto com o economista Roney Fraga Souza– um denso estudo sobre “Propriedade Intelectual, Inovação e Desenvolvimento” encomendado pela ABPI (ver em: https://www.abpi.org.br/estudos/). Agora, com Souza e a advogada Adriana Carvalho de Pinto Vieira, publica, pela editora Ideia, “Propriedade Intelectual, Royalties e Inovação na Agricultura”. O livro, que pode ser baixado gratuitamente em pdf, discute “controvérsias sobre o papel da PI na agricultura”, e, ao mesmo tempo, demonstra como a Propriedade Intelectual, nas últimas décadas, contribuiu para alavancar o País da condição de importador para a de um dos líderes do agronegócio global. Nesta entrevista Buainain fala sobre algumas das “controvérsias”.
O quanto a propriedade intelectual foi essencial para o desenvolvimento, nos últimos anos, de uma agricultura de ponta no País, com grandes saltos de produtividade?
Antônio Márcio Buainain: Foi muito importante. Desenvolvimento nunca é resultado de apenas um fator, mas de um conjunto de regras, iniciativas, investimentos etc. A aprovação de regras de PI, a partir de meados da década de 1990, criou um marco legal favorável aos investimentos em P&D na área da agricultura, que foi sem dúvida essencial para o setor de sementes, um dos vetores da inovação no setor. A promulgação das normas de PI deu maior segurança jurídica para os investimentos das transnacionais no mercado de soja e demais grãos, que resultaram na geração de novas tecnologias (biotecnológicas), em que a semente é o maior vetor de aplicação. O marco legal da PI produziu uma reordenação no mercado de sementes, com ingresso de novos stakeholders, principalmente empresas multinacionais, que tiveram que se articular e valorizar empresas nacionais que detinham o conhecimento local e as variedades que melhor se adaptam às condições do Brasil. O que se observou foi muita cooperação e parcerias entre empresas públicas (como a Embrapa) e empresas privadas, nacionais e multinacionais, potencializando a pesquisa e, consequentemente, o processo de inovação no setor.
Qual a sua resposta para a controvérsia na cobrança de royalties do setor de sementes?
AMB: O debate sobre esse tema, no Brasil, é muito distorcido e aqui também encontramos “negacionistas”, que negam o direito de cobrança de royalty, questionam a legitimidade etc. O proprietário de um imóvel tem direito de cobrar e receber aluguéis; você aluga um carro e paga alguém pelo uso. Então, por que o proprietário legítimo de um ativo de propriedade intelectual não teria direito a cobrar pelo uso do ativo? Gastamos muitas páginas sustentando essa legitimidade que nos parece óbvia. O debate válido se refere ao valor do aluguel, às condições de locação, obrigações do locador e locatário. E por isso temos leis que regulam a matéria. Esse mesmo debate, sobre o royalty, é válido e bem-vindo. A cobrança dos royalties é legítima e relevante porque remunera os investimentos de risco em P&D; em determinadas condições, pode sim ser abusiva. Não encontramos evidência de que isso tenha ocorrido no Brasil, em relação à agricultura. Se tivesse tido abuso, e não trouxesse benefício para os produtores, o ritmo de adoção das tecnologias protegidas não teria sido tão vertiginoso.
Como avalia a atual legislação para os cultivares (Lei n° 9.456/1996)?
AMB: Diversos esforços já foram feitos para atualizá-la e há algum tempo se discute entre diversas instituições para que se façam as devidas modificações na LPC, de forma a fortalecer os direitos, torná-los mais eficazes em alguns aspectos, principalmente para reprimir a semente pirata e evitar que a indústria ilegal e paralela de sementes e mudas tenha cada vez mais mercado. A LPC precisa ser renovada para garantir a continuidade da dinâmica da inovação no setor de melhoramento vegetal. As mudanças climáticas estão se manifestando com uma rapidez impensável e nós precisaremos de muito esforço de P&D para manter a competitividade da agricultura brasileira. Mas é preciso ter cautela porque, no Brasil, desenvolvemos uma enorme expertise em desconstruir conquistas em nome do aperfeiçoamento e atualização de leis, programas etc. O risco de piorar a LPC é real. Basta acompanhar os debates e propostas.
O livro trata do desafio, no geral, de valoração/avaliação dos ativos intangíveis e das patentes, em particular. Qual o caminho para superação desta dificuldade?
Os ativos intangíveis, base do licenciamento e da cobrança de royalties, são únicos e por isso mesmo de difícil avaliação. Em outro trabalho (BUAINAIN, A.M.; BONACELLI, M.B.M.;MENDES, C.I.C. Propriedade Intelectual e Inovações na Agricultura. Rio de Janeiro: IdeiaD/INCT/PPED. 384p.) já está sinalizada a dificuldade, em muitos casos até de delimitar o objeto protegido. Patentes mal escritas, por exemplo, dão margem ao oceano de disputas que inundam as cortes, e que debilita o próprio direito dos legítimos detentores do ativo. O baixo desenvolvimento dos mercados de intangíveis dificulta, ainda mais, a mensuração e a valoração para efeito de venda ou licenciamento. As particularidades dos mercados de intangíveis criam dificuldades para a precificação da tecnologia, geram reações e contestações, em particular em contextos nos quais os produtores passam a pagar por algo que era percebido como grátis ou de baixo custo. A única medida objetiva do valor da tecnologia, base para sua comercialização, é o benefício que gera para o usuário. E a melhor medida do benefício é a adoção, pelo usuário, da tecnologia. Portanto, não há uma fórmula padrão. A valoração é analisada caso a caso em todos os setores econômicos.