A Inteligência Artificial na Arte: a proteção dos outputs no Direito Comparado
A advogada gaúcha Jéssica Pinheiro Oyarzábal gosta de arte, tecnologia e Direito. A ordem pode variar, mas essa tripla combinação de gostos explica em parte o recém-lançado “A Inteligência Artificial na Arte: a proteção dos outputs no Direito Comparado”, editada pela Lumen Juris. No livro, objeto de intensa pesquisa, a autora, que é coordenadora da Comissão de Estudos de Direito Internacional da Propriedade Intelectual da ABPI, discute a proteção dos outputs no Direito Comparado em cinco sistemas jurídicos internacionais, considerando as diferenças no regime de copyright, da Common Law, e de Droit d´Auteur, próprio do sistema jurídico continental-europeu. Especialista em Direito Internacional pela UFRGS e Mestra em Direito pela mesma universidade, nesta entrevista ela fala sobre seu livro: uma tese de mestrado, com bolsa de pesquisa do DAAD no Max Planck Institute of Innovation and Competition, Munique, Alemanha.
A Justiça dos EUA já determinou que obras de arte geradas por sistema de Inteligência Artificial não terão proteção por direito autoral, decisão que vem sendo seguida por muitos países. A polêmica jurídica no que diz respeito à titularidade destas obras está encerrada?
Jéssica Pinheiro Oyarzábal: Ainda que os casos judicializados em diversos países possam demonstrar maior cautela no que diz respeito à titularidade dessas obras, com base nos fundamentos da pessoa humana, todo o caso deve ser analisado nas suas particularidades diante dos contornos do sistema jurídico em discussão. A tecnologia da IA está em constante aperfeiçoamento. Logo, novas situações podem surgir e questionar a viabilidade de reconhecimento da titularidade por meio dos institutos que cada sistema jurídico (seja no copyright seja no droit d´auteur) possui.
Como o ordenamento jurídico poderá proteger por direito autoral obras criadas com auxílio de IA, uma vez que a Lei de Direitos Autorais vigente nos países considera que o autor de obra artística é uma pessoa física?
JPO: Considerar ou não a viabilidade de proteção dos trabalhos gerados por IA dependerá do sistema jurídico que está em análise e como se compreende seus conceitos como autoria, titularidade e originalidade. Por exemplo, nos sistemas de droit d´auteur, em que França e o Brasil fazem parte, a proteção autoral se trata de direito personalíssimo (obra oriunda do espírito) e dificilmente se reconhecerá autoria diversa da pessoa humana. O arcabouço normativo, de forma geral, consegue acomodar os resultados gerados por IA, desde que não se busque a atribuição de autoria e/ou titularidade para um sistema e, sim, à pessoa humana ou à coletividade (de pessoas humanas).
Qual a tendência internacional, neste quesito?
JPO: De modo geral, a tendência internacional se mostra cautelosa para proteção dos trabalhos gerados por IA diante dos casos judicializados. Em especial, nas situações em que não há controle sobre o output que gera trabalhos considerados artísticos. Pouquíssimos foram os casos em que houve reconhecimento de violação de copyright por trabalho gerado por IA, tal como na China em que foi atribuída responsabilidade à empresa desenvolvedora do programa. Embora possa existir corrente que manifeste posicionamento mais utilitarista na defesa da importância de amparo legal sobre os outputs da IA, por outro lado, os casos judicializados demonstram posicionamento mais conservador em defesa do humano. No estado em que a tecnologia se encontra, ela ainda depende da iniciativa humana, independentemente do nível de autonomia que apresenta (nem que essa dependência seja para literalmente ligá-la ou desligá-la).
No caso brasileiro, em sua opinião, o PL 2.338/2023, que tramita no Senado Federal e dispõe sobre o uso da IA, está no caminho para dar conta da complexidade desta questão?
JPO: O PL 2.338/2023 é oriundo do relatório da Comissão de Juristas (CJSUBIA) que se propôs a discutir a regulamentação da IA reunindo diversos setores do poder público, a sociedade civil, os empresários e o âmbito acadêmico, bem como uniu os projetos de lei anteriores (5.051/2019; 21/2020 e 872/2021). O projeto realmente busca estabelecer normas gerais de caráter nacional para o desenvolvimento, implementação e uso responsável de sistemas de inteligência artificial (IA) no Brasil, com enfoque nos direitos fundamentais. Demonstrando, assim, ser o projeto que está mais próximo de regulamentar o uso da IA no Brasil semelhante ao que outros países já estão fazendo. Porém, com relação aos direitos intelectuais e a tecnologia da IA, o projeto não se aprofundou tal como se verifica em outras legislações, como a UE. Isso, de certo modo, já antecipa certa lacuna para lidar com a complexidade da questão de forma clara.
Em seu livro, você analisou dois principais sistemas jurídicos que tratam do direito autoral no âmbito da IA: o copyright, da Common Law, e o droit d’auteur, do sistema continental europeu. Qual deles, em sua opinião, mais protege a criação geradas pela IA? E por quê?
JPO: Em tese, o sistema de copyright se mostraria mais receptivo para amparar os trabalhos gerados pela IA, devido aos contornos do sistema que privilegia a proteção à obra do que o sistema continental europeu que ampara a personalidade do autor. Contudo, no âmbito norte-americano, existe disposição no Compendium of U.S. Copyright Office Practices que expressamente prevê que a autoria humana é requisito essencial para registro dos trabalhos. E a recente decisão judicial reforçou esse posicionamento. Por outro lado, o sistema inglês de copyright possui dispositivos no CDPA (Copyright, Designs and Patents Act 1988) que mostraria ser aplicável para reconhecimento de proteção aos trabalhos gerados pela IA cabendo a autoria da pessoa (humana) que realizou os ajustes necessários no programa que gerou o output. Porém, até o presente momento, não houve caso judicializado que debatesse a aplicabilidade desse dispositivo para situação envolvendo sistema de IA de modo aprofundado e que gere precedente.
Como remunerar e garantir os direitos dos autores dos conteúdos anteriores, utilizados pelo algoritmo para compor a obra final?
JPO: Acredito que “como será feito” se trata de uma das perguntas que realmente valem “um milhão de dólares” (risos). Esse é um dos pontos nevrálgicos quando se trata de IA e proteção dos resultados gerados, pois muitos dos dados que alimentam a IA são oriundos de obras protegidas e em que não há autorização para esse uso (e que, de certo modo, repercute no direito de sequência). Ainda, cabe pontuar que, inclusive, é o único conteúdo que o PL 2.338/2023 expressamente se ocupa com relação aos direitos intelectuais e o uso de dados com a finalidade de treinamento do sistema de IA sem prejuízo aos autores e titulares desses direitos. Logo, é provável que esse seja um dos aspectos de maior centralidade para regulamentação sobre uso responsável e ético da IA qu,e repercute na proteção autoral.